SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: Uma análise sobre a conduta antijurídica dos pedidos de fechamento da Suprema Corte Brasileira

Por Larissa Pinheiro Quirino (professora do Curso de Bacharelado em Direito da FASP – Professora de Direito Processual Civil e Direito Tributário. Advogada. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Mestranda pela UFPE)

O Poder Judiciário, separado da interferência direta do Poder Executivo, teve seus alguns de seus contornos com o fim do Regime Absolutista, quando exsurgiram as ideias iluministas de descentralização do Poder do Estado, com Montesquieu e John Locke, por exemplo. Mesmo atenta ao fato de que as ideias acerca da necessidade da separação dos poderes estatais já eram levantadas por Aristóteles, na Antiguidade, foi com o Iluminismo que tivemos mudanças mais consideráveis neste particular.

Os ideais de separação de poderes das teorias clássicas tinham como principal objetivo não a separação do poder em si, mas evitar a concentração do poder estatal nas mãos de um só sujeito, o que já tinha se mostrado desastroso na época do Absolutismo Monárquico. O foco era fugir da tirania, como bem apontado pelos Federalistas na construção política dos Estados Unidos.

Nesse começo, o Judiciário apresentou uma atuação tímida, e até mesmo limitada, de modo a se afirmar, inclusive, que o Judiciário deveria ser um mero “Boca da Lei” (MONTESQUIEU, 1993, p. 301), não havendo grande liberdade na interpretação do texto normativo quando da construção da norma jurídica individualizada (decisão judicial).

No Brasil, o “Supremo Tribunal Federal” foi criado desde o Império, através de ato editado em 10 de maio de 1808, por Dom João, à época nominado de Casa de Suplicando do Brasil. Somente com a Proclamação da República, passou a ter a nomenclatura adotada até os dias atuais, contando com uma configuração de um tribunal com perfil semelhante ao que encontramos hoje.

A atuação do STF durante o período da República Velha foi bastante contida, pois, tendo ocorrido, já naquela época, lutas pelo Poder Executivo (como aconteceu com a ascensão do Marechal Floriano Peixoto à Presidência), os ministros ainda eram temerosos de que o Executivo “fechasse” as portas do tribunal, inclusive tendo sido feita uma ameaça, a qual se atribui ao Presidente Floriano Peixoto, de que se os ministros concedessem novo habeas corpus em favor de “inimigos” políticos do Presidente da República, não se saberia depois que concederia habeas corpus em favor dos próprios ministros[1].

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no processo de redemocratização do país, assistimos a um contorno de um novo desenho institucional do STF, o qual passou a ser uma Suprema Corte com poderes muito amplos, diante da prolixidade do texto constitucional e da atribuição de grande gama de competência a este tribunal.

Com o passar dos anos, o tribunal começou a perceber sua função dentro de um Estado Democrático de Direito e, considerando que todos deveriam se submeter ao Direito posto (essa é a definição desse modelo de Estado), inclusive aqueles que exerciam os poderes majoritários, o STF passou a proferir decisões cada vez mais ativistas, no sentido de exercer funções que não lhe eram outorgadas tipicamente, mas que correspondiam à sua função de tutela de direitos fundamentais, diante das ações e omissões do Executivo e/ou Legislativo.

O Supremo Tribunal Federal, como todo o Poder Judiciário, tem uma função importantíssima dentro do Estado Democrático de Direito, buscando garantir direitos mínimos previstos na Carta Magna, bem como buscar equilibrar a tensão inevitável entre os poderes estatais. Com o nítido empoderamento da nossa Suprema Corte, aconteceram distorções na execução do seu mister, como bem apontou Oscar Vilhena Vieira [ao falar sobre a Supremocracia] e Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhano Ribeiro [que desenvolveram a ideia de Ministocracia]; o que não significa dizer que o STF deve ser minado e extinto dentro do sistema jurídico ao qual nos submetemos.

Devemos nos afastar dos discursos vazios de austeridade, onde por haver distorções na execução de um serviço público, levantamos a bandeira de sua extinção. O que seria de nós, em épocas de pandemia, se tivéssemos encampado ideias estapafúrdias sobre o fim do Sistema Único de Saúde, pelo fato deste serviço público estar sucateado pela desídia do próprio Governo?!

O fato de o Supremo Tribunal Federal errar na mão na condução de algumas discussões jurídicas [aqui refletindo dentro de uma perspectiva bem técnica, e não idealista], não deve nos fazer adotar um discurso de ódio, de quebra de harmonia estatal e completamente inconstitucional.

Defender o fechamento do tribunal que é responsável pela guarda da Constituição Federal e compõe a Corte de Cúpula à qual os cidadãos podem se socorrer para ver garantido seus direitos, é jogar contra si próprio como sujeito de direitos dentro de um Estado Democrático de Direito.

Se existem distorções na atuação do tribunal, o caminho não é a defesa da extinção de instituições estatais, para que não cheguemos a um ponto político, econômico e social de terra arrasada, com a concentração de poder nas mãos de uma única instância, o que, pela História, já sabemos que não é benéfico para a sociedade. As incorreções devem ser estudadas, e propor-se um novo desenho institucional do tribunal e da organização política, com novas perspectivas científicas, como bem defendido por constitucionalistas como Bruce Ackerman e Jeremy Waldron, por exemplo.

O discurso de ódio e extremista, só se adequa àqueles que não têm conhecimento científico e jurídico, que não compreendem que, através de adequações necessárias no cenário político, consegue-se buscar um melhoramento na atuação das instituições. Mas diante de um cenário nacional onde pouco se investe em pesquisa e muito se investe em publicações de redes sociais, é compreensível [mas não aceitável] a disseminação de ideias como a defesa do fechamento da Suprema Corte do nosso país.

A não aceitação de referido discurso vai muito além de questões políticas e ideológicas, pois este não é o foco deste breve ensaio; em termos técnicos e jurídicos, o pedido do fechamento do Supremo Tribunal Federal constitui ofensa à Constituição Federal e se caracteriza como crime contra a Segurança Nacional, previsto nos arts. 16 e 17 da Lei nº 7.170/1983.

Lutemos, portanto, para que o Direito empurre a história pra frente, como diria Luís Roberto Barroso, e para que a desinformação não nos puxe para o retrocesso da tenebrosa centralização de poder, com a extinção de instituições que atuam em favor da garantia de direitos fundamentais.

Referências

ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Trad. Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

ACKERMAN, Bruce. We the People: Transformations. Cambridge: Harvard University Press, 1998.

ACKERMAN, Bruce. We the People: Civil Rights Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2014.

ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernanda. “Pragmatismo como [meta]teoria da decisão judicial: Caracterização, Estratégias e Implicações”. In: SARMENTO, Daniel (Coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. “MINISTOCRACIA: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático de direito”. In: Novos estud. CEBRAP. vol.37. no.1. São Paulo. Jan./Apr. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.25091/s01013300201800010003. Acesso em: 10 out. 2020.

ARISTÓTELES. A política. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003. (Coleção obra prima de cada autor).

ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Rideel, 2007. (Coleção biblioteca clássica).

BARROSO, L. R.. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2009

HAMILTON, Alexander; HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Trad. Viriato Soromenho Marques e João C. S. Duarte. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.(Coleção pensadores).

LOCKE, John. The second Treatise of Government. John Locke: Political Writings. Edited and with an Introduction by David Wootton. London: Penguin Books, 1993, pp 261- 387.

MONTESQUIEU, Charles Louis de. O Espírito das Leis. Trad. Pedro Vieira Mota. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

RODRIGUES. Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal.Tomo I: Defesa das liberdades individuais (1891 – 1898).  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. t. 1 e 2.

THOMAS, George. The Madisonian Constitution.  Baltimore:  The Johns Hopkins University Press, 2008.

VILE, M.J.C. Constitutionalism and Separation of Powers. Indianapolis: Liberty Fund, 1998.

VIEIRA, Oscar Vilhena. O Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

VIEIRA, Oscar Vilhena. “Supremocracia”. In: Rev. direito GV. vol.4 no.2 São Paulo July/Dec. 2008. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322008000200005. Acesso em: 10 out. 2020.

WALDRON, Jeremy. “Separation of Powers in Thought and Practice?, In:Boston College Law Review, Newton, v. 54, pp. 433-468, 2013.


[1]Se os juízes do Tribunal concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão. Frase atribuída à Floriano Peixoto pelos Historiadores do Direito. In: RODRIGUES. Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal.Tomo I: Defesa das liberdades individuais (1891 – 1898). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p.19.

Fonte: Valor Econômico. <https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/06/01/stf-podera-limitar-o-impacto-bilionario-de-sete-disputas.ghtml&gt;

Deixe um comentário