PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO: UMA VERDADEIRA REFORMA?

Por Larissa Pinheiro Quirino
Professora de Direito Processual Civil e Direito Tributário da FASP
Mestre em Direito pela UFPE
Especialista em Direito Tributário pelo IBET

Encontramos hoje, tramitando no Congresso Nacional, quatro propostas de alteração legislativa no que tange ao sistema tributário brasileiro. Duas delas são propostas de emenda à Constituição; e as outras duas, consistem em projetos de lei, para alteração da legislação infraconstitucional.

As propostas de Emenda à Constituição Federal (PECs 45 e 110), ambas datadas do ano de 2019, conglobam uma mesma ideia de alteração. Enquanto a PEC nº 45/2019, proposta pelo Deputado Federal do MDB, Baleia Rossi, visa extinguir cinco tributos (IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS) para a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), propondo concentrar toda a arrecadação desta tributação sobre o consumo nas mãos da União Federal, e retirando o ICMS e o ISS da competência dos Estados e Municípios; a PEC nº 110/2019, proposta pelo Senado Federal, também indica a extinção de tributos incidentes sobre consumo, mas agora fala na extinção de nove tributos (IPI, IOF, PIS, COFINS, PASEP, CIDE-Combustíveis, Saláro-Educação, ICMS e ISS), e propõe a criação de um IBS Federal, o IBS Estadual e Municipal e um Imposto Seletivo.

Além das PECs, nós temos dois projetos de lei em tramitação, os quais foram propostos pelo governo federal.

O Projeto de Lei nº 3.887/2020 visa a instituição da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), extinguindo a PIS e COFINS, mas mantendo a arrecadação da nova contribuição nas mãos da União.

Percebemos claramente que esta primeira etapa de propostas de alteração do sistema tributário brasileiro (apesar de ter outras nuances, mas compilamos até aqui, os principais aspectos), tem como objeto a simplificação da tributação sobre o consumo, no sentido de unificar a cobrança em um ou poucos tributos, o que leva a uma maior facilitação na fiscalização e arrecadação de valores.

Além dessas propostas, temos uma “segunda etapa da reforma tributária”, representada pelo Projeto de Lei nº 2.337/2021, o qual visa, primordialmente, promover alterações no Imposto de Renda, tendo como principais pontos: a) revogar a isenção de incidência de IRPF sobre os lucros e dividendos, alterando o art. 10 da Lei nº 9.249/1995; b) promover a atualização da tabela progressiva do IRPF; c) reduzir a alíquota do IRPJ; dentre outras alterações.

Ao analisar as linhas acima escritas, devo lançar uma pergunta imprescindível ao leitor: podemos afirmar que as propostas em tramitação no Congresso Nacional, encerram uma verdadeira reforma tributária?

A reflexão deve ser profunda e é extremamente necessária.

Costumo sempre afirmar em minhas aulas e conversas sobre Direito Tributário, que o nosso sistema tributário é extremamente regressivo, e contribui sobremaneira para a alta concentração de renda e, consequentemente, para a extrema desigualdade social no Brasil. Lições adquiridas com as pesquisas realizadas na Universidade Federal de Pernambuco, sempre acompanhadas da orientação da querida professora Luciana Grassano.

As pesquisas sérias sobre a tributação no Brasil, concluem pela sua regressividade diante da constatação de que aquelas pessoas que ganham menos, arcam com um maior peso da carga tributária; enquanto aquelas que compõem o topo da pirâmide social, são pouco tributadas. Mas como isso pode ser verdade?!

Simples! Apesar de se poder afirmar que a carga tributária brasileira não é muito alta, perfazendo uma média de 32,1% do PIB nacional, encontrando-se abaixo da média dos países da OCDE; praticamente 50% desta tributação incide sobre o consumo. O que significa que, aquelas pessoas que têm poucos recursos, e utilizam-no quase em sua totalidade em consumo, sofrem uma incidência de uma pesada carga tributária. Noutro giro, a tributação sobre rendas, lucro e ganho de capital perfaz um quantum de apenas 18% do total da carga tributária brasileira; e sobre a propriedade, temos uma tributação de média de 4,5% do total da carga tributária.

Esses dados significam que, uma pessoa muito rica, que tem uma renda mensal de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), gastando apenas R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) com consumo, e tem o restante de sua renda utilizada para investimentos em propriedades e ganhos de capital, terá a incidência de uma carga tributária de 50% [correspondente a consumo] apenas em uma parcela de 10% de sua renda mensal. O restante de sua renda, sofrerá uma incidência muito pequena de tributação.

Enquanto a pessoa que está na base da pirâmide social, ganha um salário mínimo, e gasta todo seu salário com consumo (feira, gás, aluguel…) tem uma incidência de carga tributária de 50% [correspondente ao consumo] sobre a totalidade de sua renda mensal.

Mas por que estou falando de regressividade do sistema tributário brasileiro, se o tema deste ensaio é a “reforma” tributária?

Bem, lembrando da pergunta feita anteriormente: “podemos afirmar que as propostas em tramitação no Congresso Nacional, encerram uma verdadeira reforma tributária?”, não seria possível respondê-la sem ter a consciência da atual situação do sistema tributário brasileiro, pois só assim o leitor será capaz de avaliar se as propostas de alteração realmente reformam alguma coisa.

A regressividade tributária acima apontada consiste em uma deformidade do sistema tributário brasileiro, pois, para atender a ideais de justiça fiscal e isonomia material, necessário se faz que a tributação seja progressiva, de modo que quem tem um maior poder financeiro, contribua mais com o financiamento do Estado através do pagamento de tributos; com isso, consegue-se redistribuir renda [pois com a arrecadação dos mais ricos, investe-se em políticas públicas necessárias para aos mais necessitados[1]], diminuir a desigualdade social e tornar a tributação mais justa e efetiva para uma melhoria da sociedade como um todo.

Esse entendimento está presente em estudos sérios desenvolvidos por Thomas Piketty e Marc Morgan, economistas que realizam pesquisas sobre desigualdade social, e que constataram, em 2018, que o Brasil era o país mais desigual do mundo, em muito decorrente da regressividade da sua tributação.

Dentro desta perspectiva, percebemos que, a REFORMA TRIBUTÁRIA que o Brasil precisa, perpassa pela mudança deste paradigma, buscando diminuir a regressividade do seu sistema tributário, através da diminuição da carga tributária sobre o consumo; o aumento da faixa de isenção do imposto de renda pessoa física; o aumento da quantidade de faixas de alíquotas do IRPF a serem utilizadas de forma mais justa e condizente com o princípio da capacidade contributiva e; acima de tudo, com a imposição de uma tributação mais severa sobre o capital.

Não encontramos nenhum destes pontos nas propostas de alteração que tramitam no Parlamento do nosso país, o que nos leva a crer que nossos “representantes” pouco se importam em representar as verdadeiras necessidades da população que o elege, prezando pela simplificação do sistema de tributação sobre consumo, para uma maior arrecadação, ao invés de diminuir esta carga tributária; trazendo uma atualização incipiente da tabela progressiva do imposto de renda pessoa física; e não trazendo incidência efetiva sobre bens, rendas e ganhos de capital, nem se importando em aumentar a tributação sobre a propriedade, de forma racional, justa e progressiva.

Concluímos, portanto, que as propostas de alteração em tramitação, são uma boa simplificação do sistema de tributação sobre o consumo; mas quando se fala em reforma, as propostas passam longe do sentido real desta palavra.


[1] É ilusório pensar que a tributação é um meio de redistribuir renda de forma efetiva, e de com a tributação o Estado retira cada vez mais dinheiro dos mais ricos para dar as mais pobres através de políticas públicas e programas assistenciais.  Isto porque, quando as grandes empresas e os bancos precisam de socorro, é o Estado que injeta investimento público para “salvar” estas instituições privadas, como aconteceu na crise imobiliária de 2008, nos Estados Unidos, por exemplo.

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